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Propostas metodológicas a partir de um gênero narrativo – a crônica

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Os diferentes gêneros permitem uma gama de possibilidades didáticas 

O educador, mediante o desempenho de seu laborioso exercício profissional, vê-se incumbido de percorrer diversos caminhos rumo à descoberta de práticas metodológicas que lhe permitirão alcançar todos os objetivos aos quais cotidianamente se propõe. Dificuldades, barreiras, situações tempestuosas... Ah! Sem dúvida são fatores que compartilham deste intento, contudo, à medida que suas experiências vão se aprimorando, adquire habilidade para driblar todos estes entraves.


E, assim, em meio a esse ínterim, algumas descobertas, entrecortadas pelo viés da sabedoria, vão surgindo. Uma delas reside no fato de explorar os múltiplos recursos proporcionados pela diversidade de gêneros com os quais compartilhamos no dia a dia. E por que não exaltar aquele que nos parece tão familiar, representado pelas crônicas? Já que as encontramos retratadas pelos diferentes veículos de comunicação... jornais impressos ou divulgadas pelo meio eletrônico, livros didáticos, revistas, enfim, entre tantos outros.


A princípio faz-se necessário que os educandos se tornem um pouco mais familiarizados no que tange aos aspectos peculiares do gênero em foco. Para tanto, vale enfatizar que a crônica integra os chamados textos narrativos, porém com alguns aspectos dignos de nota, como, por exemplo, poucos personagens, tempo e espaço limitados, presença de um narrador- observador ou até mesmo de um narrador-personagem. Tais aspectos se fundem a outro, talvez o de maior relevância – o fato de o cronista atribuir aos fatos narrados um colorido especial, conferindo-lhes um toque de sutileza, proporcionando que o leitor os veja por um ângulo diferente, singular.


Além destes elementos constitutivos, há ainda outras possibilidades a serem exploradas – por sinal um tanto quanto contundentes: o aprimoramento da análise interpretativa, ou seja, a competência em desvendar a ideologia, as intenções firmadas por meio do discurso e a reflexão propriamente dita, com vistas a reforçar os valores humanos, até então um pouco “adormecidos”.


Ao ressaltar a análise discursiva, é de fundamental importância apontarmos o fato de que as ideias não são fruto do além, ou seja, não existem por si só. Ao contrário, são oriundas de uma relação intertextual, com base em fatos, acontecimentos mundanos, experiências realizadas. Dessa forma, no intuito de reforçar ainda mais nossa discussão, atenhamo-nos aos dizeres de Eni P. Orlandi, em uma de suas obras, intitulada “Análise do discurso”:

O fato de que há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer, é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso e a sua relação com os sujeitos e com a ideologia.


Eis, então, que surge uma crônica de Fernando Sabino, funcionando como um efetivo subsídio rumo à concretização de nossa proposta. Ao estabelecermos contato com esta, verificamos que o autor denuncia a exploração do trabalho infantil – uma relevante problemática que acomete toda a esfera social da contemporaneidade. Para análise, é salutar que ressaltemos alguns trechos:

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Na escuridão miserável

Eram sete horas da noite quando entrei no carro, ali no Jardim Botânico. Senti que alguém me observava enquanto punha o motor em movimento. Voltei-me e dei com uns olhos grandes e parados como os de um bicho, a me espiar através do vidro da janela junto ao meio-fio. Eram de uma negrinha mirrada, raquítica, um fiapo de gente encostado ao poste como um animalzinho, não teria mais que uns sete anos. Inclinei-me sobre o banco, abaixando o vidro:

- O que foi, minha filha? - perguntei, naturalmente, pensando tratar-se de esmola.
- Nada não senhor - respondeu-me, a medo, um fio de voz infantil.
- O que é que você está me olhando aí?
- Nada não senhor - repetiu. - Tou esperando o ônibus...
Onde é que você mora?
- Na Praia do Pinto.
- Vou para aquele lado. Quer uma carona?
Ela vacilou, intimidada. Insisti, abrindo a porta:
- Entra aí, que eu te levo.
Acabou entrando, sentou-se na pontinha do banco, e enquanto o carro ganhava velocidade ia olhando duro para a frente, não ousava fazer o menor movimento. Tentei puxar conversa:
- Como é o seu nome?
- Teresa.
- Quantos anos você tem, Teresa?
- Dez.
- E o que estava fazendo ali, tão longe de casa?
- A casa da minha patroa é ali.
- Patroa? Que patroa?
Pela sua resposta, pude entender que trabalhava na casa de uma família no Jardim Botânico: lavava roupa, varria a casa, servia a mesa. Entrava às sete da manhã, saía às oito da noite.
- Hoje saí mais cedo. Foi 'jantarado'.
- Você já jantou?
- Não. Eu almocei.
- Você não almoça todo dia?
- Quando tem comida pra levar de casa eu almoço: mamãe faz um embrulho de comida pra mim.
- E quando não tem?
- Quando não tem, não tem - e ela até parecia sorrir, me olhando pela primeira vez. Na penumbra do carro, suas feições de criança, esquálidas, encardidas de pobreza, podiam ser as de uma velha. Eu não me continha mais de aflição, pensando nos meus filhos bem nutridos - um engasgo na garganta me afogava no que os homens experimentados chamam de sentimentalismo burguês.
- Mas não te dão comida lá? - perguntei, revoltado.
- Quando eu peço eles dão. Mas descontam no ordenado. Mamãe disse pra eu não pedir.
[...]

Fernando Sabino

Mediante uma leitura atenta do texto, nota-se que ambas as propostas parecem se completar ao mesmo tempo. Dessa forma, o ideal é que o educador permita que os alunos reconheçam todas as características antes mencionadas, propondo, posteriormente, um debate acerca do assunto mencionado e fechando, com “chave de ouro”, com uma pausa reflexiva, visando ao despertar do senso crítico e, consequentemente, ao aprimoramento da visão de mundo.

Por Vânia Duarte
Graduada em Letras
Equipe Brasil Escola